domingo, 28 de dezembro de 2014

COQUEIRO





COQUEIRO

Não sou nato desta terra
que matou a minha fome.
Mas hoje a vida se encerra
na terra que tem meu nome
porque o mundo moderno
atende ao homem de terno
dos prédios da construção.
A vida que quer mudança
faz morrer a esperança
de não ver mudar o chão.

Quando fui aqui plantado
junto com meus companheiros,
em número aproximado
de milhares de milheiros
não pensava neste fim.
E o vento dizia assim:
- “Aqui viveu muita gente
de copa alta ou rasteira,
porém a mata primeira
acabou-se de repente.”

Eu sempre senti com medo
o que o vento me dizia,
a imaginar o enredo
dos que sentiram agonia
de ser mosto há tempo atrás.
Mas, da vez, eu era o ás
e me plantaram com gosto.
Não pensei me deparar
com a morte a se mostrar
bem diante do meu rosto.


Com o fim da mata primeira
a terra, então, descampada,
pelos primos da palmeira
findou foi sendo ocupada.
E por ser terra de mar,
os donos desse lugar
tiveram plano e ação:
coqueiros dariam renda
em qualquer uma fazenda
para especulação.

Apesar disso, cresci
sob a quentura do sol,
nas minhas palhas senti
o vento desse arrebol
junto com meus companheiros.
Sempre sentimos faceiros
ventania na madeira.
Terminamos entortados
por ser tanto machucados
nessa região praieira.

Era tão doce escutar
as ondas e seu marulho
e ver o vento chegar
e fazer algum barulho
roçando nas nossas palhas,
que essas milhares de galhas
tem um lindo farfalhado,
e com o som do oceano
me lembravam um piano
sendo por anjos tocados.


Era tão doce de ver,
no início da madrugada,
o sol quente em seu nascer
deixar luz amarelada
passar por dentro da gente
e depois se por dolente
daquele mesmo jeitinho.
Mas porém do outro lado,
que o sol nasce molhado
só que morre bem sequinho.

E depois chegava a lua
escondida no negrume
da nossa madeira nua
até chegar lá no cume
desses velhos coqueirais;
quando então dava sinais
se era nova ou se era cheia,
se era crescente ou minguante,
a clarear nesse instante
a terra de fina areia.

Mas o tempo foi passando.
Nós fomos envelhecendo
e côco não foi gerando
o esperado dividendo
que agora aqui nesta terra,
se minha mente não erra
só tem coqueiro velhinho.
Pois sabe quem vê zeloso
que qualquer coqueiro idoso
tem caule em cima fininho.


Hoje eu choro por mim
e minha tranquilidade,
que nossa vida era assim
antes que a outra cidade
se expandisse além do rio,
quer a capital traz um frio
qual de um câncer em ação.
E minha duna, meu monte
Finda por passar na ponte
gente e destruição.

Pra mim, meu fim teve início
com a ponte do construtor.
O altar do sacrifício
dos pequenos sem-valor,
que impedem o progresso
e representam o regresso
esperando sua vez
de serem pisoteados,
cortados, dilacerados
perdendo a cor da sua tez.

São tantos loteamentos,
metragens e marcações.
E os pedreiros aos centos
se ocupam nas construções.
Vejo telhados surgindo.
Quanto mais deles subindo,
mais coqueiros chegam ao chão
que a serra cortadeira
de uma mão matadeira
age sem ter coração.


Por morar longe da ponte
eu vejo todo processo.
Comprovo que não há fonte
de pensar neste progresso.
que age sem emoção.
E nesta sua impulsão
não possui um sentimento
que não seja o do dinheiro.
Hoje o reino do coqueiro
vira o reino do cimento.

Portanto, estou condenado
a ver morrer cada amigo.
Meu destino está selado,
mas, a data não persigo
por ser meu dia de morte,
quando então verei um corte
me separar desta terra.
Não bastante essa tristeza,
testemunho a natureza
de mim mesmo que hoje encerra.

Ontem mesmo chorei tanto
a ver um trator gigante
sair de um longínquo canto
com uma força pujante
e um barulho roncudo,
com a pá derrubando tudo,
seguindo uma linha reta,
fazendo um clarão de nada
que será lugar de estrada
de gente que se afeta.


Máquina de ferro frio
que move de baixo a cima.
E sentindo um arrepio
cada bicho desanima
com esse trator que arrasa.
Pois cada coqueiro é casa
de uma espécie diferente:
seja anum-branco, anum-preto,
gavião e passo-preto
vivem num mesmo batente.

Noutro canto, outro trator,
com aquele roncado feio,
na força do seu motor
passando bem pelo meio
de um mato bem cheinho
que tinha ninho e mais ninho
daquelas brancas garcinhas.
Que muitas bateram asas
abandonando suas casas
com caras espantadinhas.

Mais à frente, outro coqueiro
muito folhudo e bonito
foi derrubado inteiro
e um bando de periquito
fugiu bem descontrolado.
Cada qual foi para um lado
naquele voar verdoso
e com grito barulhento
anunciando o momento
que era muito melindroso.


Também assisti tristonho
o trator que nada vê
com o seu peso medonho
dar fim a um saruê
que fugia pela estrada,
já que a toca, soterrada,
tinha desaparecido.
E esse pobre coitado
Morreu sendo atropelado
onde já teve vivido.

Cá do alto pude ver
a poeira levantando
e o vento sem saber
pra longe ia levando.
O sol ficando mais quente.
Tudo a ficar diferente.
Pouca sombra era achada.
Que o pica-pau de coqueiro
que aqui andava brejeiro
não dá mais a martelada.

Até que a noite chegou
com um silêncio do cão.
O movimento parou
dos tratores em ação.
Dia de labor se encerra
e aquele cheiro de terra
que foi recente bulida.
Cheiro de mato mexido,
cheiro de caule ferido,
aquele cheiro sem vida.


E quando o trator parou
bem perto e defronte a mim,
meu instinto me avisou
que era próximo o fim.
A minha última noite,
dolorosa como o açoite
batendo em algum costado.
Passei a noite chorando
até que foi clareando
o dia em seu reinado.

Agora já estou vendo
os homens chegando cedo.
Minhas palhas tão batendo
como quem sente algum medo.
Parecem saqueadores,
que não vão aos seus tratores
sem água doce beber
dos cocos que já caídos
são os frutos que os vencidos
legam após fenecer.

Um destes homens entrou
no trator defronte a mim,
bateu a chave e ligou
o motor ligeiro assim
veio em minha direção,
que senti tremer o chão
sem nada poder fazer.
Aquele amarelo-mal
ia traçando o final
dos anos do meu viver.


Gritei: - Venha desalmado!
Traga a ferragem dura!
Me derrube do outro lado!
Pra ti não tem prefeitura
seja vermelha ou azul;
não tem norte, nem tem sul.
Esta terra não tem lei!
Por mais que eu seja coqueiro
que chegou aqui primeiro
desta terra não sou rei.

Mas o trator foi simbora,
seguiu outra direção.
Fazendo de fora a fora
aquela estrada de chão,
aplanando, retirado,
afastando, derrubando
com sua pá de metal.
Fazendo subir poeira
tal a força verdadeira
de um progresso letal.

Suspirei aliviado,
mas tive preocupação
por não ter mais avistado
nenhum bicho neste chão.
Todo mundo foi simbora
e sem poder cair fora
só espero meu momento.
Tristonho e envergonhado
que o meu reino encantado
vira um reino nojento.


Ouvi um barulho perto
e um brilho de metal,
olhei pra o novo deserto
e senti o meu final
com aquela dor profunda
que a triste serra imunda
rasgava a minha madeira.
Depois ouvi o estalido
do meu caule bem ferido
nessa região praieira.

Senti o corpo caindo
e minhas palhas batendo.
Mas nada estava ouvindo,
tudo estava escurecendo.
Inda vi mais periquitos
voando todos aflitos
em seu verdoso voar.
Tanta tristeza senti
que caído resolvi
fechar de vez meu olhar.



Eduardo Lopes Teles
Barra dos Coqueiros
07/11/2012

sábado, 9 de agosto de 2014

KARNE KRUA - SEJAM BEM VINDOS AO FIM DO MUNDO [drops]

A Faz o que pode Produtora acompanhou o dia-a-dia das gravações do próximo álbum da Karne Krua que está no forno. Seja bem vindo ao fim do mundo você também.

Segue três teasers deste documentário com imagens das gravações do álbum.









sexta-feira, 20 de junho de 2014

PENÉLOPE, CAIS E ESPERA - UMA ABORDAGEM TEÓRICO-PRÁTICA DA PRODUÇÃO EXPERIMENTAL AUDIOVISUAL



Este trabalho toma como base o mito de Penélope, filha de Ícaro (irmão de Tíndaro, rei de Esparta) e Peribéia (a ninfa). Casada com Ulisses, guerreiro enviado à guerra de Tróia (que durou 20 anos). Penélope tinha a fama de possuir virtudes domésticas, tendo assim diversos pretendentes durante a época da guerra, tendo, além disto, um pai insistente em um novo matrimônio, sendo que Ulisses, seu esposo ausente, confiara-lhe a guarda do reino de Ítaca para o filho do casal, Telêmaco, em caso do não retorno e Tróia. É com base nessa trama que o vídeo foi inspirado, começando com uma cena da personagem num cais como quem espera a volta de um barco. A partir daí, abre-se um ciclo de memórias da personagem desde o momento de sua partida de casa, num ato de amor a Ulisses e insubmissão ao pai na insistência da sugestão de um novo casamento. Pela dubiedade da submissão ao marido (ou ao amor) e pela insubmissão ao patriarcado, Penélope sai de casa. Errante, vaga seguindo para o mar, na esperança cega de ver o retorno de Ulisses a qualquer custo, e com sua caminhada.

Nesta pesquisa, pretende-se observar os resultados obtidos pelo processo de composição da obra e a relação entre os elementos específicos do vídeo (que por sua natureza utiliza a gramática cinematográfica), observando também o vídeo em questão enquanto estrutura fílmica desprendida de seu motivo e do seu fim. Pela indefinição dos motivos que estimularam a personagem, este trabalho pretende propor um diálogo com o espectador, convidando-o (a partir da intriga gerada por essa indefinição) a participar da criação desta narrativa, dando margem para os pressupostos dele, que exercitando o raciocínio sobre a imagem, faz surgir, significados diferentes de acordo com o seu conhecimento prévio, desde o simples observar e apreciar as imagens à compreensão parcial ou total do argumento e roteiro propostos para a obra. Na verdade o que o espectador verá é o resultado da experimentação do processo combinatório dos elementos a cima propostos.

Este vídeo utiliza duas estruturas básicas: Uma macroestrutura com a narrativa propriamente dita, dividida em três segmentos onde o primeiro é sucessor dos dois seguintes e duas microestruturas: uma no que chamaremos aqui de sessão 2 e uma microestrutura em progressão aritmética - P.A.[1] -  de razão dois na sessão 3 do segundo segmento, onde o segmento 1 corresponde às cenas internas, da personagem em sua casa, e o segmento 2, às cenas da caminhada da personagem.

Para uma melhor compreensão, vamos a uma breve análise do vídeo, que começa com o número 3 estampado na tela, dando a primeira dica ao espectador de qual parte daquela narrativa está vendo. Em seguida vemos a personagem em um plano longo, com câmera e personagem estáticos. Esse plano tem como duração o tempo exato do primeiro movimento da peça do músico inglês Richard Wright que anuncia o tom dramático da obra. Após esse plano único do terceiro segmento, o número 1 aparece na tela, indicando aí o início cronológico desta narrativa, tendo já como trilha sonora o segundo movimento de Sysyphus, onde neste primeiro segmento, a disposição dos planos na narrativa segue as teorias einsesteinianas de produção de sentido a partir da justaposição dos planos, apresentando a personagem em sua casa à espera de Ulisses, utilizando efeitos de iluminação e montagem para simular a passagem do tempo com cenas gravadas sob       luz natural para dar a veracidade da luz do dia, e cenas iluminadas com lâmpada alógena de sódio que nos dá uma luz amarela, para simbolizar a luz noturna. Inicialmente, ao som de um piano melodioso vemos a personagem insone e / ou desolada pela casa, respondendo a um estímulo que não está presente na narrativa (a convocação de Ulisses para a guerra de Tróia). Uma cena em especial nesse primeiro segmento macroestrutural dá ao espectador uma dica do motivo deste comportamento da personagem: a partitura que aparece no plano detalhe é uma transcrição para piano a quatro mãos de A sagração da primavera de Igor Stravinsky (a partir dessa imagem, os conhecedores de música poderão matar essa ‘charada’), enquanto a personagem está debruçada sobre o piano repetindo uma única nota. Os três últimos planos desse primeiro segmento estrutural (de n°1 na narrativa) representam a fuga e a libertação dessa mulher que passa pela câmera tendo seu vestido como um ponto de corte para o blackout para encerrar aqui o prólogo narrativo, assim como fez Alfred Hitchcock em Festim Diabólico (Rope, 1948), onde se utiliza dessa técnica para dar continuidade à cena na troca de rolo no filme, podendo assim dar segmento à narrativa em um suposto plano sequência, que vai desde o momento do crime até a sua dissolução.

Esta sequência de imagens do primeiro segmento que descreve a rotina da personagem tem como referência um filme do diretor underground Kenneth Anger em seu filme Puce Moment. Fragmento de um projeto inacabado intitulado Puce Women, Anger faz uma narrativa em seis minutos de uma personagem feminina típica dos anos 50, preparando-se para supostamente passear com seus cães com o vestido azul (puce / purple em inglês). Anger realiza esse filme privilegiando as imagens, trabalhando cuidadosamente seus enquadramentos e composições dos planos dispostos na montagem sobre a trilha sonora do também underground Jonathan Halper e as teorias de Eisenstein.

Depois desse efeito de Blackout, inicia-se um segundo segmento estrutural, tendo a inserção do número 2 uma elipse entre as duas partes. Esta segunda parte que se inicia, propõe utilizar planos longos (ao contrário do primeiro segmento) em slow motion[2], que gera um efeito de câmera lenta, dilatando mais ainda o tempo, desde o seu primeiro plano, que dura 50 segundos. Geraldo Motta, diretor do filme O senhor do labirinto afirmou certa vez na palestra O plano cinematográfico[3] que "um plano que dura além de sua simples necessidade funcional nos obriga a reconsiderar a imagem segundo critérios menos diretamente ligados à estória, modificando nossa apreensão do tema e da imagem". Sendo assim, a duração do plano é um acontecimento que pode convidar o espectador a uma atitude mais contemplativa, assim como também pode irritar ou criar um sentimento de angústia e / ou mal-estar com relação à imagem projetada na tela. Temos como exemplo disso a cena de estupro no filme Irreversível[4] que, em tempo real, 13 minutos, sem cortes faz do espectador uma testemunha ocular do fato causando uma repulsa ou sensação de impotência diante da cena; Temos exemplo de experimentos com a duração do plano também em Glauber Rocha, em seu filme Câncer (1968-72), quando começou a estudar planos longos, na prática, influenciado pela utilização pioneira dos planos-sequência[5] de Jean Marie Straub, fazendo de Câncer um filme com 27 planos-sequência com dração aproximada de 12 minutos cada (um rolo de uma Eclair 16mm[6]), quase eliminando a decupagem e montagem clássica, onde a câmera se apresenta não mais como uma câmera de cinema fotografando no sentido clássico da fotografia cinematográfica, mas registrando a ação como um VT, como aponta Mota (2001).

Neste segundo segmento, também é proposta uma nova estrutura, denominada no roteiro de sessões. A primeira sessão corresponde a imagens frontais da personagem. A segunda, a tomadas laterais e a terceira, de costas, sempre intercaladas por planos de “descanso e espera”. Os planos que compõem a sessão 1 são longos e foi aplicado um efeito de slow motion na pós produção, que, além de dar um caráter de leveza e languidez aos gestos da performer, conferem também um caráter contemplativo do plano longo, além da sua necessidade narrativa. Na sessão 2, (os planos laterais da performer), o tamanho dos planos diminui e temos alguns planos-detalhe que não mais obedecem às regras clássicas do Raccord  - um recurso que garante a coerência entre dois planos, mantendo a continuidade fílmica, que foi utilizado unicamente no fim do primeiro segmento - transformando-se simplesmente em mais um recorte espaço-temporal assim como os outros planos.

As imagens duplicadas indicam um sinal de dúvida da personagem quanto à valia da sua atitude, e as tomadas laterais da performer seguem, quase invasivos, num quase-close do rosto. Em seguida, temos planos curtos onde vemos enquadramentos incomuns ao cinema clássico, e um efeito de repetição (do plano e da personagem num mesmo plano), onde a personagem atravessa o plano, mas não o completa, desaparecendo por trás das árvores acompanhada por uma imagem dela mesma, num truque de montagem já conhecido desde o início do século XX (numa referência ao já citado filme de Alvin Knechtel Cockeyed: Gems from the memory of a nutty cameraman). A sessão 3 começa com um plano transitório onde a performer é vista de lado e a câmera pára e a personagem passa pela câmera. No plano seguinte temos a performer agora de costas, seguindo seu caminho num longo plano de aproximadamente dois minutos, que é entrecortado por uma progressão aritmética, começando com um único plano de exatos quatro frames contendo a imagem do rosto de Ulisses. A partir daí, a progressão aritmética segue desencadeando uma profusão de imagens, e entre cada elemento dessa progressão, vemos a continuação do plano anteposto, até o n° 32 da progressão, voltando tudo ao normal. Em seguida, numa cena noturna, novamente é utilizado o efeito de blackout a partir do vestido da performer, e nesse blackout, vemos nuances da personagem, iluminada, caminhando em várias direções, onde os longos espaços sem estímulo visual algum - a tela preta, sem imagens - representam elipses de tempo, numa sequência onde agora, vaga sem sentido em todas as direções do plano, até que voltamos a um plano da realidade da personagem: uma breve tomada subjetiva do ponto de vista da personagem - enquanto espera no primeiro plano - surge na tela subitamente, sugerindo um breve retorno à razão (o ‘não formar imagens mentais’ e enxergar rápido e de súbito a realidade), e as memórias recomeçam, entretanto agora vemos dois fragmentos de memória da personagem: ela enquanto caminha e lembra e a lembrança que ela tem enquanto caminha. Vemos as duas estruturas de imagens sobrepostas: uma delas novamente na microestrura da P.A, entretanto agora sem o rosto de Ulisses, sobreposta à imagem da personagem caminhando, sugerindo que ela agora, novamente em dúvida estivesse pensando sobre a sua condição de mulher, filha, esposa e mãe, em conflito com o desejo: meramente uma poética visual. Essas fusões de imagens sobrepostas seguem até o final do vídeo, quando mais uma vez uma profusão de planos acontece, iniciando com uma tomada do rosto de Ulisses, (o motivo de toda essa espera), em fusão com a imagem que inicia o vídeo, exatamente o mesmo recorte espaço-temporal que vemos no primeiro plano, com a imagem sumindo num longo fade out[7], determinando o fim do vídeo, o que confirma que a personagem nunca saiu dali, completando e fazendo compreender o ciclo das memórias.

Para entender melhor a memória da personagem enquanto imagem, tomemos o registro em vídeo como “fotografias em movimento” e o plano enquanto um recorte do tempo e do espaço do real, representado assim como na fotografia, de acordo com Martin (1990) quando afirma que “a imagem fílmica restitui exata e inteiramente o que é oferecido à câmera, e o registro que ela faz da realidade constitui, por definição, uma percepção objetiva: o valor probatório do documento fotográfico ou filmado é um princípio irrefutável” (MARTIN, 1990, p.21), onde esse princípio irrefutável seria a imagem. Dubois (1993, p.314) aponta que essa imagem registrada seria o “equivalente visual exato da lembrança. Uma foto é sempre uma imagem mental. Ou, em outras palavras, nossa memória só é feita de fotografias” (p.314). Desde a antiguidade, Cícero (106 - 43 a.C.), linguista e filósofo, já incitava seus discípulos à recorrência da memória na área da retórica, sugerindo-os escolher em pensamento, lugares distintos e formar para si imagens das coisas, concluindo que “as imagens lembram as próprias coisas” (DUBOIS, 1993 apud CÍCERO). Seria esse o pensamento básico do Ars Memoriae (arte da memória). Estas imagens são dispostas em lugares que são formadores da estrutura do dispositivo de memória que se encadeiam “de acordo com uma lógica relativamente automática em nossa cabeça”. Essas imagens são em sua maioria signos simbólicos, alegóricos, colocados em um determinado lugar por um tempo, enquanto que os lugares permanecem na memória, e as imagens, quando não mais precisamos delas, apagamo-las, permitindo que outro conjunto de imagens para outro trabalho de memória venha a ocupar esses lugares. Dubois observa também uma dupla natureza desse jogo imagético do exercício da memória. A escrita interior, proposta pelo autor anônimo de Ad Herenium, e a valorização da visão enquanto órgão de sentido mais sutil em Cícero, que afirma que “percorrer a imagem é o meio mais seguro de conservar a lembrança de algo”, (Dubois apud Cícero) concluindo então que essa escrita interior de imagens realiza-se em pensamento como uma atividade psíquica elaborada na antiguidade, tem agora um equivalente na possibilidade do registro e armazenamento da imagem.

Após essa descrição da macroestrutura, vamos analisar como é articulada a microestrutura nos moldes matemáticos da progressão aritmética, utilizada no vídeo: composta por planos de apenas quatro frames, onde os intervalos entre os elementos da progressão é o dobro da razão da progressão multiplicada pela quantidade de frames de cada imagem que a compõe. Sem obedecer de fato à ordem da macroestrutura, totalizando ao final trinta e seis planos curtos de quatro frames cada, que vão surgindo, numa progressão aritmética de razão um, onde temos um plano a mais para cada uma sequência de imagens que aparecem, totalizando 36 sequências (a última com 36 planos). A progressão (assim como as sequências) se desenrola iniciando com o rosto de Ulisses (o real motivo daquele martírio), para no último elemento da projeção, repetir-se, formando assim uma estrutura cíclica, contendo entre seu início e final, além de imagens subjetivas da personagem, imagens já vistas anteriormente pelo espectador, como se a câmera fosse uma espécie de portal entre a imagem e o espectador voyeur[8].

EQUIPAMENTO E PROCESSO


Para a realização deste trabalho formou-se uma equipe pequena (quatro pessoas apenas), com amigos conhecedores do processo de produção audiovisual.

Foi utilizada uma câmera fotográfica digital (canon powershot S5is), capaz de capturar imagens em movimento e nos dar também a possibilidade técnica de controle dos recursos fotográficos (abertura de iris, velocidade e tempo de exposição, foco, etc.), utilizando a luz natural (para as cenas diurnas) e luz artificial alógena (para as cenas noturnas).

Em três dias de gravação (05, 06 e 12 de setembro de 2009) todo o material bruto foi captado, em cinco locações: A casa do próprio diretor, o bosque do conjunto residencial Inácio Barbosa, o abandonado parque dos cajueiros, a praia de Atalaia e uma das escadarias dos mirantes do mercado central. Nas cenas externas sempre se aproveitou as locações da cidade, num exercício do olhar para a finalidade audiovisual, onde, na etapa de pré-produção do vídeo, foram fotografadas várias locações[9] na cidade visando à realização desta obra.

A casa foi aproveitada para compor os ambientes de interiores da narrativa, que foram as primeiras cenas a serem gravadas, por uma preferência da fotógrafa do vídeo na opção de começar o processo trabalhando com a luz controlada em ambientes internos. Esse processo de gravação das cenas de interiores durou aproximadamente seis horas. No dia seguinte, foram gravadas todas as tomadas externas, devidamente realizadas com sucesso, entretanto o tempo que tivemos não foi suficiente para realizar mais variações de cada plano (como por exemplo, os planos detalhes[10]), pois estávamos trabalhando com luz natural, que ia caindo com o fim do dia. Fora essa pressa, e a dispersão de um dos membros da equipe (que foi parar em outro lugar que não a locação combinada), tudo correu como programado, inclusive nos permitindo esperar o anoitecer para fazer as tomadas noturnas externas ainda no parque, e retornar ao bosque para as noturnas. Deixamos para o último dia de gravação a cena mais difícil de ser realizada: o plano sequência inicial, que foi gravado às 05h20min da manhã, na praia de Atalaia, para garantir uma iluminação sutil e poética em termos fotográficos. O clima colocou a equipe em xeque, pois choveu praticamente a madrugada inteira, e ainda estava nublado quando saímos do ponto de encontro para a locação. Na cena, podemos ver o céu ainda nublado, o que nos dá ainda um tom “frio” na imagem.
 Foi utilizado para a produção deste vídeo um orçamento de exatos R$ 190,06.

MONTAGEM E FINALIZAÇÃO


O processo de edição e finalização foi totalmente elaborado na casa do autor deste trabalho, em um computador pessoal, utilizando o software Sony Vegas Video 9.0, possibilitando todos os recursos de edição necessários.

Todos os planos foram gravados sem cortes, com a performer vindo de encontro à câmera, e depois retornando até a marca limite de quadro, para que fosse aproveitado, na montagem, qualquer um dos trechos do plano para ser ajustado à narrativa conforme a escolha do diretor.

A escolha dos planos na montagem se deu, no primeiro segmento, de acordo com o roteiro, porém, na montagem do segundo segmento, as imagens foram escolhidas (para a justaposição) de certo modo, aleatoriamente (mas procurando dar a continuidade de dia e noite, que indicam a passagem do tempo na trama), tendo em vista sua combinação estética com a anterior, já que estamos trabalhando com blocos de tempo e espaço autônomos dentro da narrativa.

Duas cenas foram espelhadas na montagem, como solução encontrada para a narrativa. Um mesmo plano, foi utilizado duas vezes: uma com a performer caminhando em direção à câmera, outra espelhada com ela se afastando da mesma, para fazer sentido no jogo de eixos de câmera.[11]

O SOM EM PENÉLOPE, CAIS E ESPERA


Segundo Marcel Martin (1971, p.22), "o som é também um elemento decisivo da imagem pela dimensão que lhe acrescenta". Isso, do ponto de vista dos filme narrativos de linguagem clássica. Aqui nesta obra, não temos o som dos ambientes. O som ambiente é substituído por música, sendo elemento componente desta linguagem utilizada, tendo como referência os filmes do Kenneth Anger “Scorpio rising” e “Rabbits moon”, que utiliza músicas dos anos 50 e 60 em sua trilha sonora e “Eaux d´artifice”, com trilha sonora de Vivaldi; ou em “Nosferato no Brasil” de Ivan Cardoso, onde ele utiliza bossa nova e garota de ipanema para esteriotipar o Brasil, ou um ataque de uma vampira a um rapaz ao som de Jimmy Hendrix, coexistindo entre Rolling Stones e Roberto Carlos, a fim de colaborar com as imagens na construção fictícia da visita de Nosferato (uma versão tupiniquim do personagem de Murneau) à este país tropical. Assim como nesses filmes, em Penelope, cais e espera, não há nada além de uma sequência de músicas pré-determinadas pelo diretor do filme, que segue a uma sequência de imagens. Júlio Medaglia, maestro e compositor de trilhas de novelas nos anos 70, afirma que a música, quando escolhida para a função de sonora no audiovisual, deixa de ser música pura, passando a assumir função descritiva tornando-se veículo de informação, trabalhando em parceria com a imagem ou como elemento de contraponto da mesma, ou ainda ser utilizada como “elemento de informação da temperatura dramática do desenvolvimento da ação” fílmica, denotando ao espectador a situação psicológica da ação, direcionando-o para o objetivo da obra, concluindo ainda que “a música enquanto trilha sonora é uma arte conceitual” (Medaglia, 2003, pp 232-263).

A trilha sonora deste trabalho prático é composta por músicas contemporâneas do grupo inglês Pink Floyd (os dois movimentos iniciais da peça Sysiphus, composição do tecladista Richard Wright), e a peça orquestral “Dead city radio: audiodrome” do compositor Fausto Romitelli (1963-2004), que foram escolhidas tanto pela sua carga dramática, quanto pela oscilação entre tensão e relaxamento encontrada nas duas obras: a primeira obra que abre o vídeo é uma anunciação do tema exposto pelo compositor (assim como a primeira imagem do vídeo anuncia o clima deste). Em seguida o desenvolvimento desse tema vai do piano melodioso a clusters[12] graves, à medida que as imagens vão noticiando os estados de tensão à ‘fuga’, como se a agonia da personagem não coubesse mais dentro daquela casa; a peça musical contemporânea (2003) Dead city radio. Audiodrome de Fausto Romitelli, trabalha o tempo inteiro com a tensão em ‘explosões’ da orquestra e com os graves dos metais e da guitarra elétrica em crescendo, em ciclos que tem como contraponto os agudos da percussão, flautas e violinos. A essência orgânica da música de Romitelli, seus timbres e sua forma oscilante e cíclica, dá ao vídeo a tensão necessária na caminhada da personagem, do início ao final do segundo segmento.

Por fim, os créditos finais são apresentados ao som de John Lennon com a canção Woman is the nigger of the world, onde o compositor expõe um ponto de vista sobre a condição da mulher, aqui, representa uma observação sobre o tema do vídeo, também sugerindo uma reflexão (em forma de objeto artístico) sobre essa condição feminina desde a Grécia antiga aos dias de hoje, acrescentando à obra, o caráter da arte pós-moderna de observar o outro (multiculturalismo e feminismo), segundo Heartney (2002), concluindo o vídeo.
A ausência de texto falado e/ou escrito no vídeo contribui para a compreensão universal da obra unicamente pela linguagem do cinema.



[1] Sempre que referido P.A. leia-se Progressão Aritmética
[2] Recurso de edição pelo qual podemos tornar mais lento os movimentos registrados pela câmera. Algumas câmeras de vídeo profissionais possuem este recurso que pode ser aplicado no momento da captura da imagem, entretanto, neste caso o efeito de “câmera lenta” foi aplicado durante a edição.
[3] Palestra realizada em Aracaju, 2008.
[4] Irreversible, Gaspar Noé, 2002, França.
[5] Planos longos que acompanham uma ação, formando uma sequência inteira sem cortes
[6] Câmera utilizada para a filmagem da obra.
[7] Efeito de escurecimento da imagem até o preto total.
[8] Do francês observador
[9] Locais que servem de cenários naturais para a gravação das cenas.
[10] Enquadramento semelhante ao close, que serve para dar ênfase a detalhes menores do plano anterior.
[11] Regra clássica de posicionamento de câmera que forma um eixo imaginário de 180 graus, dando ao espectador a noção de espaço.
[12] Técnica de música moderna que consiste em blocos de notas tocados de uma só vez.