terça-feira, 27 de setembro de 2011

Relatos sobre um cinema pós-industrial

(Por Mauro Luciano*)


Vejam só vocês que após a terceira grande revolução industrial, a das informações e das telecomunicações, o mundo antigo da industrialização veio abaixo. Hoje em dia qualquer indivíduo, seja ele rico ou pobre, pode ter uma câmera digital – e quem sabe até mesmo uma Full HD! O que quer dizer isso? Quer dizer que estamos em um contexto das imagens, simulacros, representações a nossa volta, todas estas captadas por um Kino Eye (olho cinematográfico) portátil. E o que tem sido gravado? Desde festas familiares a festas de faculdade – vídeos caseiros.

Há pouco tempo, não mais de 10 anos, sites de exibição, ou melhor, divulgação desses vídeos caseiros foram postos no ar. On air: na internet – na rede. Nossa network hoje é a sigla broadcast yourself do youtube. Imagens captadas por essas câmeras individuais, privadas, são publicadas com uma intenção óbvia de receber comentários de pessoas que as assistiram. A ideia de esfera pública se volta para o universo particular nerd de uma vida enclausurada de posts em blogs e redes sociais (nossas networks). Entendam – os conceitos vêm de fora, assim como as palavras.

Sendo assim, a melhor forma de deixar tudo isso muito vivo seria justamente uns pretensos artistas do vídeo, ou das artes plásticas, entrarem nesse bojo da antiga arte total e tentar revirar o cinema que morria asfixiado pela TV. As pequenas câmeras que optavam pela inutilidade cotidiana de casamentos e aniversários, agora filmam “ficção”.

Certo, antes dessa ficção vem a experimentação de uma linguagem com tonalidades documentárias. Em outras palavras – a camerazinha portátil, handycam, mesmo sem querer, capturava, e captura, uma série de “verdades” de nossa vida amadora. Não é por acaso que temos grandes blockbusters hoje sendo produzidos com essas pequenas câmeras – a textura da imagem delas denota realismo. Temos então um tipo de estética própria de nosso tempo, e que muitos festivais insistem em chamar de “tosca”.

Tudo bem, não é só nossa – vem da Nouvelle Vague, filmando em 16mm com cortes falsos, do Cinema Novo e a máxima “câmera na mão e uma ideia na cabeça”, dos filmes do movimento DOGMA alemão, do underground americano... Hoje essa democratização da arte se chama cinema de garagem, cinema de bordas, pós-industrial, e não só “filme de arte”, “cult”, “experimental”... ou tosco. O movimento não tem força hoje, mas tem personalidade e engajamento.

De tanto brigar com o pensamento industrial do cinema, ou do audiovisual – aquele pensamento que quer dividir o trabalho, encarecer as produções, deixar os produtores reféns de festivais e de incentivos do governo, Paulo Cesar Migliorini, inventor e professor no Rio de Janeiro, chegou a manifestar na revista virtual Cinética que esse cinema pós-industrial seria um eco contrário à sociedade industrial (esse que criou partidos de esquerda, a classe proletária, a divisão estreita de funções, a instrumentalização do pensamento, a alienação total do corpo humano ao trabalho, toda uma configuração que hoje não parece mais fazer tanto sentido). O cinema pós-industrial, segundo ele, estará sempre fora do mercado – algo questionável, visto que nunca a arte esteve fora dessa lógica. Mas o que fica do texto é uma luta contra um tipo de cinema, ou audiovisual, preso a ditames industriais.

Transcendências e expansões contra retrações e leis de incentivo – há uma briga hoje para imaginar o mundo. Em Aracaju, há uma imaginação atrelada ao regionalismo nordestino e provinciano (o pior lado de nossa região, pois é conservador e retrógrado), completamente vendido aos mecanismos de produção industrial. Nada que uma bela proposição de debates e diálogos não consiga tentar diluir com o tempo. Hoje, certamente, o mundo é tão democrático que até foge ao conceito de democracia, deixando todos perdidos – e os que se encontram estão ali presos às instituições e à sobrevivência no mercado hostil.
Charles Chaplin, em tempos modernos, nos mostrou o que a indústria criou dentro das relações sociais. Hoje, o realismo se foi, e vemos tudo como Guy Debord aplicou em teoria – algo só é porque aparece. Acho que aí está o ponto do cinema pós-industrial. Mostrar o que “não é”, porque “não aparece” nas TVs e festivais.


Mauro Luciano de Araújo é mestre em cinema pela UFSCar, professor universitário em Salvador e realizador de vídeos em Sergipe.  email: mauro_luciano@hotmail.com
Este artigo foi originalmente publicado no jornal Cinform, edição nº 1468, junho, 2011.  

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